quarta-feira, 31 de maio de 2017

A nossa história em memória afetiva

Um dia desses passei pela porta do meu quarto e parecia que uma bomba havia caído lá dentro. As portas do guarda-roupa e as gavetas estavam abertas. Pilhas e pilhas de roupas estavam espalhadas sobre a cama. No meio delas, minha esposa.
-- Chegou o dia de arrumar os armários.
Meu primeiro impulso foi fingir que eu não havia entendido a frase, que na verdade eu nem falo português e escapar para a rua, onde provavelmente eu me refugiaria num cinema até o caos acabar. Mas o olhar maníaco dela me fez mudar de ideia. Pessoas que resolvem arrumar armários são perigosas e não devem ser desafiadas em hipótese alguma.
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Assim, fui feito prisioneiro e obrigado a participar daquele horror. Estava pronto para concordar com tudo e tentar escapar na primeira chance, mas mudei de ideia quando ela apontou para uma pilha enorme de camisetas e disse que aquelas roupas seriam dadas.
-- Como assim, “dadas”? Dadas para quem?
-- Para a caridade, como fazemos sempre.
-- Mas nós nunca demos camisetas.
-- Temos muitas camisetas. Algumas vão ter que ir embora.
Pensei em pegar a pilha de camisetas e sair correndo abraçado com elas, dizendo que “calma, calma, eu prometo que ninguém vai tirar vocês de mim”, mas isso não resolveria o problema, especialmente porque minha casa não é grande o suficiente para eu conseguir me esconder. Assim, o jeito foi argumentar. E como a melhor maneira de ganhar uma discussão é falando a verdade, abri o jogo.
-- Você sabe que minha vida está escrita nessas camisetas, certo?
-- Como assim?
-- Esta azul aqui, por exemplo. Eu estava usando esta camiseta quando meu time foi campeão há três anos. Toda vez que eu olho visto essa camiseta, me lembro do jogo.
-- Certo. Essa pode ficar.
-- Todas podem ficar. Esta branca com este desenho... Esta aqui eu usei a primeira vez que vi um show do Deep Purple. Foi um dos melhores shows da minha vida. Olhe com calma para a camiseta. Está olhando?
-- Sim.
-- Está ouvindo o solo de Highway Star?
-- Não.
-- Eu estou. Basta eu olhar esta camiseta para escutar.
-- Esta pode ficar também. Então, duas ficam.
-- Não, todas ficam! Você não está pedindo para eu jogar camisetas fora, mas sim a minha história.
-- Você não acha que está exagerando?
Eu não estava. Fui passando pelas camisetas e mostrando que “esta aqui eu estava usando quando fui promovido”, “esta outra eu usei quando escrevi aquele texto que adoro e que as pessoas comentam até hoje”, “esta aqui foi a que vesti no aniversário de casamento dos meus pais, que eu tomei aquele porre com meu irmão e quase fui para o hospital por causa de uma crise de riso”.
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Era minha história que estava ali. Seria mais fácil se minha esposa tivesse me dado um álbum de fotos e falado para eu escolher quais eu jogaria fora. Aquela do casamento do meu primo que estou com cara de imbecil porque o Sol está batendo nos meus olhos seria a primeira a dançar. Não faço questão daquela foto, prefiro guardar a camiseta que estava usando quando meu primo me convidou para ser padrinho do casamento.
Quando eu havia acabado, sobrava apenas uma camiseta na pilha. Para a minha Esposa, dar alguma camiseta para a caridade já havia se tornando questão de honra, e aquela camiseta branca e meio velha era tudo o que a separava do fracasso completo.
-- Pelo menos esta aqui, que você usa somente para dormir, podemos dar?
Olhei a camiseta.
Anos atrás, eu estava com aquela camiseta no dia em que conheci minha esposa. Eu saí de casa sem prestar atenção ao que estava vestindo, e sem imaginar que horas depois eu conheceria a mulher por quem me apaixonaria e que, junto com minhas camisetas, iria escrever cada dia da minha história. Foi com aquela camiseta que eu a conheci. Foi com aquela camiseta que minha vida mudou.
-- Não. Essa é a mais importante.
-- Mas você só usa para dormir.
-- Não. Eu durmo com essa camiseta porque essa é a que eu uso para sonhar. É diferente.
-- Como assim?
-- Eu tenho calças demais. Se quiser dar calças, sem problema.
Rob Gordon

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